11 de fev. de 2013

Campos de Carvalho, avesso

Conheci Campos de Carvalho há muitos anos, quando, lendo uma Superinteressante, me deparei com um artigo sobre Jorge Amado ter lido uma de suas obras e comprado 30 exemplares para presentear os amigos. Aquilo me marcou, também o que o texto falava de A Lua Vem da Ásia, li e me encantei, é surreal, inspirador, vivo!

Encontrei o artigo esta manhã enquanto conversava com Rogers Silva - autor de Manicômio - que estuda a obra e vida de Campos de Carvalho. Não conheço muitas pessoas que tenham lido ou que saibam do autor, então transcrevo aqui o texto e espero que consiga despertar o interesse dos leitores do Mundo de Fantas para seus incríveis livros.

Em 1997, dois anos antes de morrer, o escritor mineiro Campos de Carvalho concedeu sua primeira e última entrevista a uma emissora de TV. Após 40 minutos de um quase monólogo, o entrevistador, desesperado, tentava fazer com que o escritor dissesse algo que fosse além dos três ou quatro monossílabos com que era brindado a cada nova pergunta. E arriscou: “O senhor é feliz?” Campos de Carvalho olhou para o alto do estúdio, para os lados, para o chão. Após um minuto e meio de um silêncio avassalador, ruidoso, o escritor finalmente respondeu. “Não.” O entrevistador, visivelmente constrangido, tentou uma “saída pela esquerda” e emendou: “Se o senhor pudesse mudar alguma coisa no mundo, o que mudaria?” De novo, um longo silêncio. Um pouco mais leve. E a resposta: “Nada”.

Assim era o escritor Walter Campos de Carvalho: desconcertante, avesso à publicidade, à glória, ao que considerava medíocre. Nascido em Uberlândia em 1916, formou-se em Direito aos 22 anos, já em São Paulo. Sua vida, contudo, sempre esteve ligada à literatura, apesar de só ter escrito seis livros. O mais conhecido, A Lua Vem da Ásia, é um verdadeiro manifesto surrealista. Depois que o escritor baiano Jorge Amado leu-o pela primeira vez, por volta de 1956, entrou numa livraria de Salvador e pediu para atendente 30 cópias. Estava tão impressionado com o texto que havia acabado de ler que resolveu mandar exemplares de presente para os amigos. Eis um trecho da obra:

“Quando em 1934 atravessei sozinho o deserto de Iguidi, tendo por única companhia um casal de borboletas, ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode ocorrer a um homem vivo ou morto, e que procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão de Marrocos, onde servi como pude durante um ano e 14 dias”.

A trama de A Lua Vem da Ásia se passa num hospício e é cheia de lances hilariantes, como uma tentativa de fuga num zeppelin envolvendo personagens completamente absurdos. O nome dos capítulos (Capítulo sem Sexo, Capítulo CLXXXIV, Capítulo) e a total ausência de sequencia entre eles (do Capítulo Primeiro pula para o Capítulo 18 graus) dão uma ideia do que espera o leitor que nunca teve o prazer de ler Campos de Carvalho.

Em suas duas últimas entrevistas, uma para o fanzine Azougue e outra para o site literário Baladas.com, o escritor afirmou ser um surrealista e que a solução era o humor. Contou também que gostava de escrever andando na rua, com lápis e papel, e que jamais reescrevia nada. Em A Lua Vem da Ásia, por exemplo, havia uma frase que o Jorge Amado não gostava, “ele me pediu para tirar, mas eu jamais tirei”, disse Campos de Carvalho ao jornalista e escritor Antônio Prata na entrevista da internet.

O autor deixou mais três novelas além de A Lua Vem da Ásia, todas com títulos, digamos, diferenciados: Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e o Púcaro Búlgaro – esta última escrita em 24 dias. Depois disso, parou inexplicavelmente de escrever. Todas as obras foram produzidas entre 1956 e 1964 e só tiveram uma edição à sua altura em 1995, quando a Editora José Olympio reuniu tudo numa coletânea.

Campos de Carvalho costumava andar todas as tardes pelo bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde morou até os últimos dias de vida. Numa dessas tardes, teve um súbito mal-estar e, pouco antes de morrer, contou à mulher Lygia que estava passando mal “por causa de um sorvete que tomei”. Uma frase típica de Campos de Carvalho, o primeiro – e talvez o último – escritor verdadeiramente surrealista do Brasil.

Obras

A lua vem da Ásia, publicado originalmente em 1956, marca o nascimento da narrativa surrealista de Campos de Carvalho. É o diário de um homem que se chama Astrogildo – mas já foi Adilson, Heitor, Ruy Barbo – e está hospedado em um hotel de luxo que, para o bem da verdade, talvez seja um campo de concentração ou um manicômio. A loucura é o tema central deste romance, cujo protagonista inicia o relato confessando que, aos 16 anos, matou seu professor de lógica e foi viver sob uma ponte do Sena... embora nunca tenha estado em Paris. Enfileirando recordações (ou seriam alucinações?) de suas passagens por Melbourne, Varsóvia, Cochabamba, Cuzco, Madagascar, Nova York, Cidade do México e, claro, Paris, Astrogildo torna-se o narrador de um mundo governado pela lei do absurdo, mas que parece assustadoramente semelhante à nossa normalidade cotidiana.

Vaca de nariz sutil, publicado originalmente em 1961, mantém o nonsense e a anarquia da obra anterior do autor, A lua vem da Ásia, sendo, porém, o texto mais sombrio de Campos de Carvalho. “Escrevi-o aos prantos”, disse numa entrevista. O romance é narrado de forma alucinatória por um ex-combatente de guerra que não diz (ou esqueceu) o seu nome e não vê mais sentido na vida entre os homens. Abrigado numa pensão, passa seus dias a espiar por buracos de fechadura as patéticas existências alheias. Vaca de nariz sutil – nome tirado de um quadro do pintor francês Jean Dubuffet (“... assim se chamava o quadro, e em vão tenho eu procurado uma vaca assim entre as vacas e sobretudo os homens”) – foi recentemente adaptado para o teatro pelo grupo Parlapatões.

Permeado por um misticismo agnóstico e anárquico, o penúltimo romance de Campos de Carvalho, A chuva imóvel (1963), é seu momento mais poético e filosófico. Trata-se da história de André Medeiros e sua irmão gêmea, Andréa, que nutrem um amor que beira o incesto. Após as mortes do irmão e do pai, André traça uma claustrofóbica descida até seu inferno interior, no qual acaba por travar uma batalha com o Diabo – ou, nas suas palavras, “ a Coisa”. O humor nonsense de A lua vem da Ásia (1956), sua primeira obra-prima, que se manteve de forma mais sombria no romance seguinte, Vaca de nariz sutil (1961), assume em A chuva imóvel uma forma ainda mais densa e lúgubre, porém sem nunca deixar de transparecer o estilo marcante do autor.

O púcaro búlgaro, último romance de Campos de Carvalho, pode ser tomado como a síntese de sua obra absolutamente original e idiossincrática: no verão de 1958, enquanto visitava tranquilamente o Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia, um cidadão chamado Hilário avistou um púcaro búlgaro. Espantadíssimo, embarcou – ao lado de Pernacchio, Radamés, Expedito e Ivo Que Viu a Uva – numa jornada à Bulgária, a fim de comprovar a (in)existência desse país. “Do que se passou e sobretudo do que não se passou nessa expedição já famosa é o relato que se vai ler em seguida”, explica o narrador, “o mais pormenorizado e o mais honesto possível, embora tenha sido reduzido ao mínimo para que pudesse caber num só volume e mesmo num só século – o que afinal se conseguiu.” A narrativa é um exercício – e também uma aula – de humor e escrita, com doses de surrealismo e um texto formado por relatos que beiram a esquizofrenia e parecem não levar a lugar nenhum, mas acabam por formar uma obra “fluente em sua descontinuidade”.

Obra que reúne os quatro títulos.
Atingir o leitor "na sua carne, no seu cerne" é o que Campos de Carvalho faz ao escrever suas histórias irreverentes, de ironia refinada - ou muitas vezes até delirante. Comparado a Henry Miller e outros autores consagrados em todo mundo, Campos de Carvalho honra a literatura brasileira com a sua explosão de criatividade, de crítica mordaz ao poder - a todas as formas de poder existentes na sociedade humana. A leitura de sua obra reunida é um passeio pelo imaginário de um homem que não se conforma com a passividade diante das regras preestabelecidas de um jogo que ele renega. A liberdade de assassinar o professor de lógica, de romper com tudo o que nos aprisiona e nos rouba a possibilidade de experimentar o sentido maior da existência.

Extra

Raras são as histórias da literatura brasileira que falam das obras do escritor mineiro Campos Carvalho (1916 - 1998), raras as antologias em que toma parte, rara as monografias, dissertações e teses. O leitor médio não o conhece, o estudante de Letras mal o conhece, muitas livrarias não o possuem e poucos são os sebos que conseguem escondê-lo por algum tempo - o bastante para um obstinado colecionador, tão raro quanto o exemplar que o cobiça, finalmente o descubra e leve embora para sempre. Trata-se, sem dúvida, de um clássico.

 



Divirtam-se, leitores.

Fonte: Superinteressante | Editora 7Letras | Editora José Olympio

11 comentários:

  1. Nunca ouvi falar desses livros, mas pela entrevista e as sinopses, realmente me interessei. Obrigada pela indicação, Celly. :)

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  2. Não conhecia os livro e nem o autor, mas se o Jorge Amado comprou trinta exemplares é porque ele escreve muito bem! Pra falar a verdade, quando vi o título do post, achei que Campos de Carvalho fosse um livro DUIASHDAUI. Gostei da dica! Minha avó provavelmente deve ter um livro dele, porque ela adora livros do tipo. Vou procurar saber (:

    Beijos, Celly!
    Mars - Letras de Chá

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    1. hehehee, é um ótimo título de livro! =P

      Fui curiosa atrás dele e ri muito! É tão incrível, mas li há tantos anos e esse é daqueles que precisa ser relido!

      Espero que você curta, mocinha. Bjosss

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  3. Nossa, fiquei muito curiosa agora, pela sinopse dos livros, adoro histórias assim. Não conhecia o autor, excelente divulgação, Celly Borges.

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    1. Tânia, pelo que conheço do seu gosto, você vai curtir, mesmo! Mas depois me conte o que achou! =*

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  4. Querida, eis um artigo interessante sobre Campos de Carvalho, de Sinvaldo Júnior e Nelson de Oliveira > http://www.revista.agulha.nom.br/ARC02CamposdeCarvalhoPor.htm

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    1. Eu li o artigo, achei incrível! Obrigada, mocinho! =)

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  5. Adorei! Fiquei curiosa para ler "A lua vem da Ásia" e a A Chuva Imóvel" ! *--* Bem minha cara rsrsrsrs.

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    1. Imaginei que você curtiria, Suzy! É a nossa cara, hihihi.

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  6. Que bom encontrar uma postagem sobre o grande Campos de Carvalho, Celly!

    Walter (como ele gostava de ser chamado) já é reconhecido pela crítica e pelo meio acadêmico, e há muitos anos, mas infelizmente não encanta o grande público. Na verdade, acho que isso acontece com todos os nossos grandes escritores, com algumas raríssimas exceções, como Drummond e Clarice Lispector, assim mesmo mais em função de suas obras menores e de fragmentos de suas grandes obras.

    A matéria da Superinteressante contém alguns erros e imprecisões, a começar pela informação inicial de que Campos concedeu a entrevista em 2007, "dois anos antes de morrer". Na verdade, ele morreu em abril de 2008. Mas era mesmo avesso a entrevistas e, além da citada, só concedeu mais três: à revista O Cruzeiro, no final dos anos 60; ao Pasquim, em 70 e poucos, e ao poeta e jornalista (do Correio de Araxá) Heleno Álvares, em dezembro de 2006.

    Quanto às obras, são sete publicadas: a reunião de ensaios humorísticos "Barra forra" (1941), os romances "Tribo" (1954) e os quatro citados, além de "Cartas de Viagens e Outras Crônicas", coletânea de crônicas publicadas no Pasquim lançada postumamente, em 2006.

    Bem, estou aqui me amordaçando, antes que esse comentário vire um tratado.

    Só pra encerrar: ontem mesmo me referi ao Campos de Carvalho em postagem que fiz sobre o lançamento de um novo livro do Heleno Álvares. Se quiser dar uma olhadinha (tem uma "foto" dele com o Heleno e eu):

    http://www.facebook.com/photo.php?fbid=4190100610529&set=a.1100742498507.13452.1825030809&type=1&theater

    Deixo ainda o link de da entrevista que "ele me concedeu" no 12o aniversário de sua morte:

    http://tucazamagnar.blogspot.com.br/2010/04/campos-de-carvalho-vive.html

    Um abraço bem surreal, camposdecarvalhiana Celly!

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